terça-feira, 22 de abril de 2014

Novas Perspectivas: O Filho Pródigo


"Estando ele ainda longe, seu Pai o viu"

Tolstói afirma que “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Aqui, a nossa aldeia se encontra na Palestina do Século I, no tempo das comunidades patriarcais.
Por questões de sobrevivência, era necessário assumir uma postura gregária, de proteção mútua. Em razão da escassez de alimento e da dificuldade de se proteger a propriedade, o isolamento era garantia de morte prematura.
As pessoas se encontravam, portanto, intimamente ligadas à terra. Do apascentamento dos rebanhos ao cultivo dos grãos, tudo era feito em conjunto pelo aldeões.
E o grande responsável pela manutenção dessa ordem era o patriarca, figura a quem se devia, portanto, grande respeito, e cuja influência se estendia para além do núcleo familiar, abrangendo também os seus empregados e suas respectivas famílias.
Diante desse cenário, e para um grupo de camponeses, Jesus narra a seguinte parábola:
“Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao seu pai: ‘Pai, quero a minha parte da herança’. Assim, ele repartiu sua propriedade entre eles. “Não muito tempo depois, o filho mais novo reuniu tudo o que tinha e foi para uma região distante; e lá desperdiçou os seus bens vivendo irresponsavelmente.
Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e ele começou a passar necessidade. Por isso foi empregar-se com um dos cidadãos daquela região, que o mandou para o seu campo a fim de cuidar de porcos. Ele desejava encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.
“Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm comida de sobra, e eu aqui, morrendo de fome! Eu me porei a caminho e voltarei para meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados’. A seguir, levantou-se e foi para seu pai.
“Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
“O filho lhe disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho’. “Mas o pai disse aos seus servos: ‘Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado’. E começaram a festejar o seu regresso.
“Enquanto isso, o filho mais velho estava no campo. Quando se aproximou da casa, ouviu a música e a dança. Então chamou um dos servos e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe respondeu: ‘Seu irmão voltou, e seu pai matou o novilho gordo, porque o recebeu de volta são e salvo’.
“O filho mais velho encheu-se de ira e não quis entrar. Então seu pai saiu e insistiu com ele. Mas ele respondeu ao seu pai: ‘Olha! todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens. Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele!’
“Disse o pai: ‘Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu. Mas nós tínhamos que celebrar a volta deste seu irmão e alegrar-nos, porque ele estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado’ “.
Para se compreender essa parábola, é preciso levar em conta que a cultura, as convenções e os costumes do Oriente Próximo do primeiro século têm influencia direta.
Nesse contexto, um gesto de fundamental importância é o pedido da antecipação da herança. Isso equivalia a desejar a morte do patriarca, uma falta tão grave que poderia ser punida com o apedrejamento.
Mesmo diante da humilhante situação, o pai concorda com a solicitação do filho.
Este, ciente do problema, rapidamente vende os bens herdados e parte uma terra distante. Lá, dilapida o patrimônio e se vê, sendo judeu, obrigado a cuidar de porcos. E em razão da fome que se abate na região, passa se alimentar da comida destinada aos animais.
No auge do seu sofrimento, o pródigo “cai em si”. E a dor, essa contumaz ferramenta pedagógica, faz sua consciência despertar. Arrependido, tomado por uma nova mentalidade, ele decide buscar o perdão do pai.
E no episódio do retorno à casa, a sabedoria de Jesus mostra-se magistral.
O patriarca, um homem cujo andar deveria ser lento e a postura, solene, corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o no rosto, na frente de todos. Aquela era uma cena chocante para o público da época e contrariava todas as tradições do patriarcado.
Por amor ao filho, o pai se humilha publicamente perante a comunidade.
Aqui, um detalhe.
Naquela região, até hoje, quando há um conflito, uma forma comum de resolução é a mediação, feita por uma pessoa de confiança dos litigantes. Se a questão for resolvida, o gesto que sela a paz é o beijo no rosto.
No caso da parábola, porém, em que o problema envolvia pai e filho na divisão de bens, a mediação caberia ao representante legal do patriarca — pela lei, o filho mais velho.
Este, contudo, percebendo que poderia se beneficiar daquela discórdia, prefere se omitir.
Retomemos.
O pai então manda trazer para o filho egresso sandálias e um anel. Isso sinalizava que a reconciliação era plena, pois eram objetos utilizados apenas por membros da família, jamais por empregados. Ele estava sendo aceito novamente como filho, e não como mero serviçal.
A melhor roupa e o novilho gordo significavam que todos na aldeia estavam convidados para aquela ocasião especialíssima, solucionando o problema entre o pródigo e a comunidade.
Ao perceber que as festividades se deviam ao retorno do irmão mais novo, porém, o mais velho “se enche de ira”, e se recusa a entrar na casa e receber os convidados, como ordenava a tradição.
“Então o pai saiu e insistiu com ele”.
Nesse instante, o filho enfurecido altera o tom de voz e sequer o reconhece como pai — “olha!” é o tratamento que ele usa. Como não bastasse, em tom de desprezo, refere-se ao próprio irmão como “este teu filho”.
O filho mais velho se queixa de ter trabalhado muito, mas em terras que seriam suas de qualquer forma. E reclama de não ter recebido sequer um cabrito, algo que poderia ter tido quando bem entendesse. Ainda, esbraveja a plenos pulmões os erros do próprio irmão.
Seria essa a postura de liderança e justiça que se espera de um futuro patriarca? Diga-se que, segundo a tradição da época, ele poderia ter sido igualmente apedrejado por essa falta.
“Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu”. Naquela sociedade, era impensável que um patriarca precisasse se justificar a um filho, sobretudo em público, ante um arroubo de fúria.
Novamente, o pai se humilha perante toda a aldeia. Agora em atenção ao filho mais velho.
Perceba que, de acordo com a narrativa, o filho mais velho estava "no campo" quando percebeu a movimentação. O fato de ele não estar em casa nos faz pensar se ele alguma vez teria realmente estado "na casa do Pai". Compartilhariam, o pai e o filho mais velho, os mesmos valores?
Por várias razões, somos levados a nos deter na queda do filho pródigo. Mas não se deve ignorar que o mais velho pareceu guardar fidelidade aos preceitos morais somente na aparência. Não se vê em suas ações qualquer resquício de benevolência ou amor. A esse comportamento dúbio dá-se o nome de farisaísmo.
Qual dos dois desestabilizou mais a estrutura da comunidade? O que errou e se arrependeu ou aquele que foi incapaz de perdoar o irmão e respeitar o pai? Esse é um dos desafios que Jesus nos lança com essa parábola.
O mestre galileu nos faz entrever que ambos os filhos estavam igualmente perdidos em seu egoísmo, cada um à sua maneira.
Um personagem, contudo, paira acima das convenções: o Pai.
No trecho em que Ele avista o filho que retorna, temos uma das mais belas lições do Cristianismo.

Ao contar a história do Pai que corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o, Jesus está nos ensinando que o restabelecimento dos laços primordiais, a religação, a “religião”, portanto, entre Deus e os homens é algo direto, sem interferências.
De forma sublime, o Cristo, além de nos indicar o caminho, mostra que nada deve ser interpor na relação entre o Pai e seus filhos.
E reitera que a única regra que deve ser seguida de maneira absoluta, sem maniqueísmos nem preferências, é a lei do amor.

O Silêncio e a Fúria (ou "da experiência de um anônimo perante o Cristo")


"Que dizes Tu?"

Diante daquela afronta à Lei, o apedrejamento era pouco para aquela mulher. Eu, respeitador dos bons costumes, homem temente a Deus, não poderia me calar: juntei-me à pequena multidão que desejava fosse feita justiça.

Não sei ao certo por qual razão, os sacerdotes resolveram levá-la, antes, à presença de um galileu a quem diziam profeta. Alguns o tinham pelo Messias. Imagine só, o “Messias”, vindo da Galileia! Acaso existe algo além de poeira e pobreza naquela terra esquecida por Javé?

Ao chegar aonde o tal profeta se encontrava, vi-o tracejando algo na areia; decerto alguma profecia antiga e obscura, cujos detalhes ele temia esquecer antes de ser desmascarado pelos doutores da lei.

Gritei, incitado pelos sacerdotes, palavras de repúdio à adúltera. O galileu continuou seus rabiscos no chão. Senti-me afrontado e ainda mais furioso com seu silêncio.

Eis que bradaram que a Lei de Moisés mandava apedrejá-la. “E tu, o que dizes?”, indagaram-lhe. Agora não havia saída também para ele: se contestasse a Torá poderíamos apedrejá-lo, por blasfêmia.

Ao se levantar, porém, os olhos do galileu de relance encontraram os meus. Não lembro ao certo suas palavras, nem quanto tempo durou sua lição, mas ouvi o som de pedras sendo soltas ao chão, e senti a fúria da turba se dissipar como se levada por uma brisa suave do Tiberíades. 

Enquanto me afastava, virei-me uma vez mais e o vi conversando com a mulher.

Não sei o que o galileu lhe dizia. Gostaria de saber. Mas segui meu caminho, pedindo a Javé que me inspirasse a não pecar mais.