domingo, 18 de maio de 2014

Projeto Pensamento e Vida - Capítulo 2 - Vontade





No grande escritório da mente

A mente humana, segundo Emmanuel, é como um grande escritório, dividido em várias repartições; há o departamento do desejo, da inteligência, da memória e tantos outros.

Acima de todos eles, gerenciando-os de maneira esclarecida e vigilante, encontra-se o departamento da Vontade.

E o ponto alto da vontade, sua “auréola luminosa”, é a Razão.

“O instinto não raciocina; a razão permite a escolha e dá ao homem o livre arbítrio”, explica o Livro dos Espíritos.

E Kardec arremata, ponderando que “nos seres que têm a consciência e a percepção das coisas exteriores, ele [instinto] se alia à inteligência, quer dizer, à vontade e à liberdade” (L.E., Questão 75).

Desse modo, a vontade orientada pela razão, e não pelo instinto, nos afasta da animalidade e nos aproxima da angelitude.

Mas qual a relação entre vontade e cérebro, a que nos referimos ao término do artigo anterior?


Motor e leme

Em Pensamento e Vida, vê-se que o cérebro funciona como um dínamo, um motor que produz energias mentais, enquanto a vontade é o leme que dá direção a essas energias, o “botão poderoso que decide o movimento ou a inércia da máquina”.

Tais energias são, a saber, a Eletricidade, energia dinâmica; o Magnetismo, energia estática; e o Pensamento, força eletromagnética.

Afirma o benfeitor que “pensamento, eletricidade e magnetismo conjugam-se em todas as manifestações da vida universal, criando gravitação e afinidade, assimilação e desassimilação, nos campos múltiplos da forma que servem à romagem do espírito para as metas supremas, traças pelo Plano divino”.

O pensamento enquanto força eletromagnética surge, portanto, como um dos agentes diretamente responsáveis pela própria formação do universo.


Além da fronteira

Aqui, abro parênteses.

A eletricidade e o magnetismo são amplamente estudados há tempos pela ciência, e suas propriedades são relativamente bem conhecidas desde o Séc. XIX. O trabalho de físicos como Michael Faraday e James Clerk Maxwell é de extrema relevância nessa área.

Faraday, cujos experimentos levaram às invenções do motor e do gerador elétricos, percebeu a indissociável ligação entre o magnetismo, a eletricidade e — veja só  a luz.

Já Maxwell demonstrou matematicamente que a luz corresponde à propagação de ondas elétricas e magnéticas, e que, a depender do referencial, uma força pode tornar-se a outra e vice-versa.

Apesar de a correlação entre eletricidade, magnetismo e luz ser pacificamente reconhecida pelo meio acadêmico, o pensamento como força eletromagnética criadora do cosmos é uma ideia que ainda se encontra além das fronteiras do conhecimento científico e das cogitações filosóficas do nosso tempo, mesmo decorridos mais de cinquenta anos da publicação de Pensamento e Vida.

Por mais que as ciências quânticas atestem que, em alguns níveis da realidade, a mera interferência mental do observador seja capaz de modificar o objeto observado, essa informação sobre o pensamento fornecida por Emmanuel é, em última análise, para os encarnados do início do Séc. XXI, um artigo de fé.

Em todo caso, considerando a autoridade da fonte, tomaremos daqui por diante essa noção a respeito do pensamento como verdadeira, não a título de dogma intocável, mas como um fato que espera por ser oficialmente reconhecido também no plano físico, no momento oportuno.

Apesar disso, a sensibilidade dos artistas vem percebendo historicamente essa realidade, a exemplo do poeta alemão Friedrich Schiller, que ainda no Séc. XVIII afirmou que “o universo é um pensamento de Deus”.

Retomemos.


Quem pensa, afinal?

Quanto à relação entre vontade e cérebro, é preciso ter em conta que o cérebro, em si, não “pensa” — quem pensa é o espírito. Assim dispõe a doutrina espírita.

Em outros termos, conforme ensina André Luiz, o cérebro é "o órgão de manifestação da atividade espiritual, o instrumento que traduz a mente" (No Mundo Maior, cap. 3).

A vontade é, dessa forma, responsável por movimentar as energias mentais produzidas pelo cérebro, as quais variam de intensidade de acordo com a capacidade de reflexão de cada um.

Essa perspectiva, ao contrário da noção de pensamento dada por Emmanuel, já faz parte dos interesses filosóficos e científicos atuais.

A chamada “filosofia da mente”, criada na segunda metade do Séc. XX, se debruça sobre o tema, tentando compreender questões relativas sobretudo à consciência e à relação entre mente e corpo.

O desenvolvimento dessa área tem sido bastante acentuado, com importantes repercussões no campo da neurofisiologia, da psicologia cognitiva e da inteligência artificial.

Dito isso, percebe-se a razão pela qual o benfeitor se refere à vontade como "o impacto determinante”.

Sua importância é tamanha que, quando utilizada de maneira pouco esclarecida e invigilante, ela acaba por desorganizar todos aqueles “departamentos” da mente, desde a inteligência até a memória, passando pelo desejo.

O resultado desse desarranjo é a manutenção do espírito nos ciclos reencarnatórios inferiores e o consequente adiamento de sua evolução, até que tenha reparado todos os enganos cometidos em nome de sua vontade mal conduzida.

“Amém vos digo que de modo nenhum sairás dali até que restituas o último quadrante”, ensina Jesus (Mt, 5:26).


Limitações da vontade

A infinita sabedoria da Providência Divina, contudo, impôs limitações à vontade.

Nos dizeres de Emmanuel, “ela [vontade] não pode impedir a reflexão mental, quando se trate da conexão entre os semelhantes, porque a sintonia constitui lei inderrogável, mas pode impor o jugo da disciplina sobre os elementos que administra, de modo a mantê-los coesos na corrente do bem”.

Aqui o benfeitor reforça que estamos inevitavelmente sujeitos àqueles princípios de interdependência e repercussão: tudo se influencia mutuamente, o tempo todo, em todas as camadas da Criação.

Assim, cabe a cada um cuidar daquilo que está sob seu comando, no sentido de não condicionar a própria vontade à vontade eventualmente mal dirigida do outro.

Ao disciplinar sua vontade, o homem consegue manter-se ligado, sempre que quiser, a bons sentimentos, a uma emotividade que gere reflexos positivos no espelho da vida.

E Emmanuel é categórico ao afirmar que “só a vontade é suficientemente forte para sustentar a harmonia do espírito”.

Neste universo de interconexões em que a existência se desfralda, não basta exercer autoridade sobre a própria vontade para que a evolução do espírito se consolide: é necessário sobretudo desenvolver o Amor e a Sabedoria.

"Espíritas! amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo", é a preciosa lição do Espírito de Verdade no Evangelho Segundo o Espiritismo (Cap. 6).

Mas quais aspectos da vida devem ser trabalhados, em parceria com as energias movimentadas pela vontade, para que se consiga esse objetivo? É justamente sobre isso que conversaremos de agora em diante no Projeto Pensamento e Vida.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Projeto Pensamento e Vida - Capítulo 1 - O Espelho da Vida




Descobrindo o espelho

“A mente é o espelho da vida em toda parte”. Com essas palavras Emmanuel começa a entrelaçar, qual habilidoso tecelão, os fios multicoloridos de diversos conceitos essenciais à dinâmica do mundo espiritual.

O produto desse tear é uma elaborada rede de informações, cujas implicações repercutem diretamente em nossa realidade física.

De início temos o conceito de Mente, a qual, segundo o benfeitor, deve ser entendida como “o campo da nossa consciência desperta”, variando de acordo com a faixa evolutiva em que nos encontramos.

A "face do espelho" é o Coração. Em linguagem figurada, utilizada também pelo judaísmo, Emmanuel se refere aqui ao local que representa a sede das emoções, da razão, da inteligência do homem.

O Cérebro é definido como o "centro das ondulações”, ponto no qual se gera o pensamento, descrito como "a força que tudo move".

Já o reflexo no espelho é um “esboço da emotividade”, responsável por plasmar a Ideia.

A Ideia por sua vez “determina a Atitude e a Palavra que comandam as nossas Ações”, as quais podem tanto nos aprisionar quanto nos libertar  “válvulas obliterativas ou alavancas libertadoras da existência”, nos dizeres do benfeitor.


Vigiai

Para entender melhor essas noções iniciais, imagine-se diante de um espelho. 

Aquilo que você vê representa a forma como percebe a vida como um todo, incluindo os aspectos físicos e espirituais. 

As dimensões do espelho serão proporcionais ao grau de despertamento da sua consciência: quanto mais desperta, maior a superfície do espelho, consequentemente, mais amplo o campo de visão que ela engloba.

A definição da imagem refletida está ligada ao coração, à emotividade. É ela que cria as ideias, as quais dão origem a atitudes e palavras, e estas desencadeiam as ações.

O ciclo iniciado pelas emoções condicionam, portanto, as ações.

Considerando que todos estamos sujeitos à lei de causa e efeito, é primordial prestar atenção aos próprios sentimentos. Essa necessidade de cuidado constante pode ser entendida como o "vigiai" a que se refere o Cristo, em sua recomendação sobre "vigiar e orar".

No Evangelho, aliás, Jesus ensina que “da abundância do coração fala a boca” (Mt, 12:34).

Dessa lição se tira que é imprescindível estar atento a todo instante às emoções, para que as mesmas sejam sempre positivas, criando reflexos igualmente positivos no espelho da nossa vida.

Nossas ações são reflexos do que há em nosso coração; mas reflexos imperfeitos, relativamente indefinidos, vez que são apenas esboços.

Com isso, Emmanuel sugere que nosso espelho ainda não é capaz de comportar imagens de nitidez cristalina, em razão nos encontrarmos nos estágios iniciais de desenvolvimento espiritual.

Aos olhos de Deus e de Jesus somos, pois, pequenas crianças.

Ainda assim, as ferramentas para nosso desenvolvimento já estão à disposição, através dos ensinamentos transmitidos pelo Cristo e seus colaboradores ao longo da história.


Interdependência e repercussão

Segundo Emmanuel, a vida como a percebemos é formada não apenas por aquilo que observamos em nosso próprio espelho individual, mas também pelas imagens que se encontram nos espelhos dos outros, as quais se interferem mutuamente. “Assinalamos, todos nós, os reflexos uns do outros, dentro da nossa relativa capacidade de assimilação”, afirma.

Todo reflexo, toda imagem, porém, desloca-se e renova-se incessantemente pela face do espelho da vida. Tudo no universo está em movimento. Do átomo ao cosmos tudo vibra, se movimenta, se influencia reciprocamente, de maneira que as imagens que projetamos influenciam e repercutem nas imagens que os outros projetam sobre nós.

É o que o benfeitor denomina de "princípios de interdependência e repercussão". Todos os fatos da vida, da Criação em suas múltiplas camadas, estão interconectados, reforçando a ideia, enfatizada também no Livro dos Espíritos, de que o acaso não existe (L.E., Questão 08).


Em direção a Deus

De acordo com Emmanuel, dentre incontáveis outras atribuições, o Cristo é responsável pela "lapidação" da mente humana, conduzindo-nos em direção a Deus. Desse modo, seu trabalho consiste em lapidar o espelho da vida em toda parte.

Em outras palavras isso significa que Jesus, sublime artesão, modela todos os aspectos do espelho da vida: amplia a sua superfície, desenvolvendo o campo da nossa consciência desperta; torna as imagens mais belas e plenas de significado, modificando nosso coração, nossa emotividade; dá contornos mais nítidos aos reflexos, fazendo-nos perceber, pela ótica do Amor, aquilo que está sendo refletido, e assim por diante, numa espiral de virtudes que se estende ao infinito.


Sob a Égide do Cristo

Jesus aprimora maneira pela qual compreendemos a realidade como um todo.

Uma vez lapidados pelo Cristo, passamos a enxergar de maneira completamente nova os reflexos que surgem no espelho da vida.

Somente nesse instante, quando abrirmos nosso coração ao coração do Cristo, quando nossas palavras e atitudes estiverem sintonizadas com as palavras e atitudes do Cristo, começaremos a desenvolver uma sensibilidade especial às imagens que projetamos e recebemos: conseguiremos enxergá-las com “olhos de ver”  ainda de maneira imperfeita, é verdade, sem todas as cores, sem um foco preciso, mas com imenso potencial para a percepção da realidade grandiosa que nos cerca, como um recém-nascido que pela primeira vez abrisse os olhos ao mundo.

Tudo isso diz respeito ao coração, figurativamente falando. A sede da emotividade, porém, está diretamente ligada ao centro de suas ondulações, o cérebro.

A esse respeito, a neurociência mostra que as emoções têm sua parcela de racionalidade, e que a razão também é emotiva. Isso nos dá a dimensão da importância da relação entre cérebro e coração, tanto no plano físico quanto no espiritual.

O cérebro, de acordo com Pensamento e Vida, é o motor das engrenagens modificadoras da realidade, uma máquina capaz de movimentar as mais poderosas energias conhecidas. A maneira como isso acontece é o que veremos no próximo post.



Projeto Pensamento e Vida - Apresentação



A relevância e o significado da obra de Emmanuel estão ainda longe de serem compreendidos em sua totalidade.


Decerto existem diversos trabalhos de excelência no campo da interpretação e difusão do seu pensamento, contudo, trata-se de uma fonte tão rica e extensa, que o convite à leitura e ao estudo se renova incessantemente.


Variando de estilo e gênero, os escritos legados pelo grande mentor espiritual do nosso inesquecível Chico Xavier incluem desde mensagens até romances, passando por textos de teor filosófico-científico.


Pode-se dizer que este é o caso de “Pensamento e Vida”, um pequeno grande livro que nos apresenta conceitos de suma importância para a compreensão de alguns aspectos da dinâmica espiritual, os quais repercutem diretamente em nossa existência física.


Até pela própria natureza de seu conteúdo, este título em certos momentos traz uma leitura mais densa, demandando do leitor uma capacidade de abstração, por assim dizer, mais atenta.


Apesar disso, conforme esclarece o próprio Emmanuel, Pensamento e Vida constitui-se de “singela cartilha falada”, utilizada em escolas de regeneração no plano espiritual, adaptada às necessidades da Terra.


É também, portanto, um verdadeiro manual de ação.


Tendo já ouvido de diversos irmãos de doutrina espírita, que a complexidade de determinadas noções e raciocínios apresentados ao longo da obra constitui obstáculo à leitura, surgiu em mim o desejo de compreende-la melhor e, a partir disso, tentar compartilhar o certamente pálido entendimento que eu porventura obtenha acerca de algumas dessas ideias. Esse é o desafio a que me presto.

Sem qualquer ilusão de atingir o sentido definitivo das palavras do benfeitor, porto-me aqui como mero aluno, ávido por estudar uma dentre as muitas disciplinas lecionadas por um admirável mestre. Nada mais.


Escreverei um artigo para cada capítulo, de modo que a ideia seja fazer desta série algo como um estudo sistematizado, entre aspas, de Pensamento e Vida.


Caso o amigo leitor tenha algo a acrescentar, comentar, criticar ou sugerir, sinta-se à vontade. Esta empreitada deve ser vista como uma construção conjunta e ininterrupta, de maneira que os textos funcionem apenas como ponto de partida, jamais como linha de chegada.


Uma das primeiras lições que Emmanuel nos apresenta no livro encontra-se já no prefácio, ao afirmar que “o nosso pensamento cria a vida que procuramos, através do reflexo de nós mesmos, até que nos identifiquemos, um dia, no curso dos milênios, com a Sabedoria Infinita e o Amor Infinito, que constituem o Pensamento e a Vida do nosso Pai”.


É com esse espírito, de buscar o Amor e a Sabedoria do Pai, sempre sob a proteção do Cristo Jesus, que rogo à espiritualidade amiga ilumine e oriente não apenas a mim, mas a todos que de alguma forma percebam qualquer traço de utilidade neste singelo projeto.


Bruno Nóbrega de Sousa
Belo Horizonte
15 de Maio de 2014

terça-feira, 22 de abril de 2014

Novas Perspectivas: O Filho Pródigo


"Estando ele ainda longe, seu Pai o viu"

Tolstói afirma que “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Aqui, a nossa aldeia se encontra na Palestina do Século I, no tempo das comunidades patriarcais.
Por questões de sobrevivência, era necessário assumir uma postura gregária, de proteção mútua. Em razão da escassez de alimento e da dificuldade de se proteger a propriedade, o isolamento era garantia de morte prematura.
As pessoas se encontravam, portanto, intimamente ligadas à terra. Do apascentamento dos rebanhos ao cultivo dos grãos, tudo era feito em conjunto pelo aldeões.
E o grande responsável pela manutenção dessa ordem era o patriarca, figura a quem se devia, portanto, grande respeito, e cuja influência se estendia para além do núcleo familiar, abrangendo também os seus empregados e suas respectivas famílias.
Diante desse cenário, e para um grupo de camponeses, Jesus narra a seguinte parábola:
“Um homem tinha dois filhos. O mais novo disse ao seu pai: ‘Pai, quero a minha parte da herança’. Assim, ele repartiu sua propriedade entre eles. “Não muito tempo depois, o filho mais novo reuniu tudo o que tinha e foi para uma região distante; e lá desperdiçou os seus bens vivendo irresponsavelmente.
Depois de ter gasto tudo, houve uma grande fome em toda aquela região, e ele começou a passar necessidade. Por isso foi empregar-se com um dos cidadãos daquela região, que o mandou para o seu campo a fim de cuidar de porcos. Ele desejava encher o estômago com as vagens de alfarrobeira que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.
“Caindo em si, ele disse: ‘Quantos empregados de meu pai têm comida de sobra, e eu aqui, morrendo de fome! Eu me porei a caminho e voltarei para meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus empregados’. A seguir, levantou-se e foi para seu pai.
“Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou.
“O filho lhe disse: ‘Pai, pequei contra o céu e contra ti. Não sou mais digno de ser chamado teu filho’. “Mas o pai disse aos seus servos: ‘Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no. Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado’. E começaram a festejar o seu regresso.
“Enquanto isso, o filho mais velho estava no campo. Quando se aproximou da casa, ouviu a música e a dança. Então chamou um dos servos e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este lhe respondeu: ‘Seu irmão voltou, e seu pai matou o novilho gordo, porque o recebeu de volta são e salvo’.
“O filho mais velho encheu-se de ira e não quis entrar. Então seu pai saiu e insistiu com ele. Mas ele respondeu ao seu pai: ‘Olha! todos esses anos tenho trabalhado como um escravo ao teu serviço e nunca desobedeci às tuas ordens. Mas tu nunca me deste nem um cabrito para eu festejar com os meus amigos. Mas quando volta para casa esse teu filho, que esbanjou os teus bens com as prostitutas, matas o novilho gordo para ele!’
“Disse o pai: ‘Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu. Mas nós tínhamos que celebrar a volta deste seu irmão e alegrar-nos, porque ele estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado’ “.
Para se compreender essa parábola, é preciso levar em conta que a cultura, as convenções e os costumes do Oriente Próximo do primeiro século têm influencia direta.
Nesse contexto, um gesto de fundamental importância é o pedido da antecipação da herança. Isso equivalia a desejar a morte do patriarca, uma falta tão grave que poderia ser punida com o apedrejamento.
Mesmo diante da humilhante situação, o pai concorda com a solicitação do filho.
Este, ciente do problema, rapidamente vende os bens herdados e parte uma terra distante. Lá, dilapida o patrimônio e se vê, sendo judeu, obrigado a cuidar de porcos. E em razão da fome que se abate na região, passa se alimentar da comida destinada aos animais.
No auge do seu sofrimento, o pródigo “cai em si”. E a dor, essa contumaz ferramenta pedagógica, faz sua consciência despertar. Arrependido, tomado por uma nova mentalidade, ele decide buscar o perdão do pai.
E no episódio do retorno à casa, a sabedoria de Jesus mostra-se magistral.
O patriarca, um homem cujo andar deveria ser lento e a postura, solene, corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o no rosto, na frente de todos. Aquela era uma cena chocante para o público da época e contrariava todas as tradições do patriarcado.
Por amor ao filho, o pai se humilha publicamente perante a comunidade.
Aqui, um detalhe.
Naquela região, até hoje, quando há um conflito, uma forma comum de resolução é a mediação, feita por uma pessoa de confiança dos litigantes. Se a questão for resolvida, o gesto que sela a paz é o beijo no rosto.
No caso da parábola, porém, em que o problema envolvia pai e filho na divisão de bens, a mediação caberia ao representante legal do patriarca — pela lei, o filho mais velho.
Este, contudo, percebendo que poderia se beneficiar daquela discórdia, prefere se omitir.
Retomemos.
O pai então manda trazer para o filho egresso sandálias e um anel. Isso sinalizava que a reconciliação era plena, pois eram objetos utilizados apenas por membros da família, jamais por empregados. Ele estava sendo aceito novamente como filho, e não como mero serviçal.
A melhor roupa e o novilho gordo significavam que todos na aldeia estavam convidados para aquela ocasião especialíssima, solucionando o problema entre o pródigo e a comunidade.
Ao perceber que as festividades se deviam ao retorno do irmão mais novo, porém, o mais velho “se enche de ira”, e se recusa a entrar na casa e receber os convidados, como ordenava a tradição.
“Então o pai saiu e insistiu com ele”.
Nesse instante, o filho enfurecido altera o tom de voz e sequer o reconhece como pai — “olha!” é o tratamento que ele usa. Como não bastasse, em tom de desprezo, refere-se ao próprio irmão como “este teu filho”.
O filho mais velho se queixa de ter trabalhado muito, mas em terras que seriam suas de qualquer forma. E reclama de não ter recebido sequer um cabrito, algo que poderia ter tido quando bem entendesse. Ainda, esbraveja a plenos pulmões os erros do próprio irmão.
Seria essa a postura de liderança e justiça que se espera de um futuro patriarca? Diga-se que, segundo a tradição da época, ele poderia ter sido igualmente apedrejado por essa falta.
“Meu filho, você está sempre comigo, e tudo o que tenho é seu”. Naquela sociedade, era impensável que um patriarca precisasse se justificar a um filho, sobretudo em público, ante um arroubo de fúria.
Novamente, o pai se humilha perante toda a aldeia. Agora em atenção ao filho mais velho.
Perceba que, de acordo com a narrativa, o filho mais velho estava "no campo" quando percebeu a movimentação. O fato de ele não estar em casa nos faz pensar se ele alguma vez teria realmente estado "na casa do Pai". Compartilhariam, o pai e o filho mais velho, os mesmos valores?
Por várias razões, somos levados a nos deter na queda do filho pródigo. Mas não se deve ignorar que o mais velho pareceu guardar fidelidade aos preceitos morais somente na aparência. Não se vê em suas ações qualquer resquício de benevolência ou amor. A esse comportamento dúbio dá-se o nome de farisaísmo.
Qual dos dois desestabilizou mais a estrutura da comunidade? O que errou e se arrependeu ou aquele que foi incapaz de perdoar o irmão e respeitar o pai? Esse é um dos desafios que Jesus nos lança com essa parábola.
O mestre galileu nos faz entrever que ambos os filhos estavam igualmente perdidos em seu egoísmo, cada um à sua maneira.
Um personagem, contudo, paira acima das convenções: o Pai.
No trecho em que Ele avista o filho que retorna, temos uma das mais belas lições do Cristianismo.

Ao contar a história do Pai que corre em direção ao filho, abraça-o e beija-o, Jesus está nos ensinando que o restabelecimento dos laços primordiais, a religação, a “religião”, portanto, entre Deus e os homens é algo direto, sem interferências.
De forma sublime, o Cristo, além de nos indicar o caminho, mostra que nada deve ser interpor na relação entre o Pai e seus filhos.
E reitera que a única regra que deve ser seguida de maneira absoluta, sem maniqueísmos nem preferências, é a lei do amor.

O Silêncio e a Fúria (ou "da experiência de um anônimo perante o Cristo")


"Que dizes Tu?"

Diante daquela afronta à Lei, o apedrejamento era pouco para aquela mulher. Eu, respeitador dos bons costumes, homem temente a Deus, não poderia me calar: juntei-me à pequena multidão que desejava fosse feita justiça.

Não sei ao certo por qual razão, os sacerdotes resolveram levá-la, antes, à presença de um galileu a quem diziam profeta. Alguns o tinham pelo Messias. Imagine só, o “Messias”, vindo da Galileia! Acaso existe algo além de poeira e pobreza naquela terra esquecida por Javé?

Ao chegar aonde o tal profeta se encontrava, vi-o tracejando algo na areia; decerto alguma profecia antiga e obscura, cujos detalhes ele temia esquecer antes de ser desmascarado pelos doutores da lei.

Gritei, incitado pelos sacerdotes, palavras de repúdio à adúltera. O galileu continuou seus rabiscos no chão. Senti-me afrontado e ainda mais furioso com seu silêncio.

Eis que bradaram que a Lei de Moisés mandava apedrejá-la. “E tu, o que dizes?”, indagaram-lhe. Agora não havia saída também para ele: se contestasse a Torá poderíamos apedrejá-lo, por blasfêmia.

Ao se levantar, porém, os olhos do galileu de relance encontraram os meus. Não lembro ao certo suas palavras, nem quanto tempo durou sua lição, mas ouvi o som de pedras sendo soltas ao chão, e senti a fúria da turba se dissipar como se levada por uma brisa suave do Tiberíades. 

Enquanto me afastava, virei-me uma vez mais e o vi conversando com a mulher.

Não sei o que o galileu lhe dizia. Gostaria de saber. Mas segui meu caminho, pedindo a Javé que me inspirasse a não pecar mais.